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Política, Educação, Ciência e Cultura 

Herdeiras políticas mantêm vivas as pautas que ela representa

“Marielle, presente!” Há cinco anos, o grito é ouvido em manifestações pelo país. Nele, está expressa a indignação pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O grito é, ao mesmo tempo, uma homenagem à memória de quem dedicou boa parte da vida na luta contra as desigualdades. Os tiros que tiraram a vida de Marielle interromperam, de maneira precoce, uma trajetória política ascendente, mas não silenciaram as pautas que representava. A morte reverberou o nome dela pelo mundo. De agente direta, virou símbolo e inspiração para os que defendem os direitos humanos e a justiça social. O dia 14 de março virou “Dia Marielle Franco – Dia de Luta contra o genocídio da Mulher Negra” no calendário oficial do Estado do Rio de Janeiro. E pode virar também uma data nacional, se o Congresso Nacional aprovar o projeto de lei enviado pelo presidente Lula na semana passada. Um auditório da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi batizado com o nome dela, assim como a tribuna da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Marielle Franco virou nome de prêmios: um que contemplava os melhores ensaios feministas de uma editora de livros e outro, aprovado na Câmara dos Vereadores de São Paulo, para celebrar defensores dos direitos humanos na cidade. Escolas de samba prestaram homenagens a ela no Carnaval de 2019. No Rio, a Estação Primeira de Mangueira citou a vereadora no samba-enredo sobre heróis da resistência. Em São Paulo, o rosto dela foi o destaque de uma ala da Vai-Vai, que apresentou enredo sobre lutas do povo negro. Nesses cinco anos, o rosto da vereadora passou a estampar murais e grafites em diferentes partes do Brasil, geralmente acompanhados de pedidos de justiça. Das homenagens mais emblemáticas, em 2018, manifestantes colaram uma placa com o nome dela em cima da sinalização da praça Marechal Floriano, no Centro do Rio. Dois deputados de extrema-direita (Rodrigo Amorim e Daniel Silveira) quebraram a placa em um ato de campanha eleitoral. Mas uma grande mobilização, que incluiu financiamento coletivo, garantiu a produção de outras milhares, iguais à original. Em 2021, a Prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou oficialmente uma placa na mesma praça. Em 2022, uma estátua de bronze da vereadora foi colocada no Buraco do Lume, também no Centro, no lugar onde ela costumava se reunir com eleitores e ativistas. O reconhecimento internacional veio de diferentes maneiras. Uma oficina de arte digital foi realizada em Nairóbi, Quênia, com o nome de Marielle. Ela virou nome do terraço da Biblioteca Municipal delle Oblate, em Florença, Itália; de um jardim suspenso em Paris, na França; de uma parada de ônibus em Grenoble, no sudeste da França; de uma rua em Lisboa, Portugal; de uma bolsa de estudos na universidade Johns Hopkins, em Washington, DC, Estados Unidos. Teve o nome inserido em uma placa da estação de metrô Rio de Janeiro, em Buenos Aires, Argentina. O rosto foi pintado em um mural em Berlim, Alemanha, e em um grafite na fachada do Museu Stedelijk, em Amsterdã, Holanda.


“Quando veio a primeira homenagem internacional, eu me lembro perfeitamente da surpresa que eu tive. Mas eu comecei a entender um pouco a missão da minha irmã aqui”, lembra a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. “Eu acho que a Mari passou por isso para abrir muitos caminhos. Passou por isso para trazer uma visão fortalecida para as mulheres, principalmente para as mulheres negras, mas para todas as mulheres que se reconheciam nela e na luta. Eu acho que ela virou onipresente”.


Legado político

Para além das homenagens, o legado de Marielle continuou vivo, sobretudo, pela ação política direta das que assumiram as pautas que ela defendia. A viúva Mônica Benício foi eleita vereadora no Rio pelo PSOL em 2020 com 22.919 votos. Na campanha, prometeu representar os projetos de Marielle, focar nos direitos humanos e nas demandas do universo LGBTQIA+.

“Hoje, o sentido da minha luta é justamente para que ninguém sinta uma dor parecida com a que eu senti naquele momento. Isso é um pouco do que norteia o meu fazer tanto na política institucional, quanto no meu fazer de militante”, diz Mônica. “Lutar pela memória da Marielle fala também sobre um lugar que não é só o da minha companheira, mas de todos os aspectos que envolvem hoje a imagem dela de representação, de luta, de esperança. Essa imagem da luta política também é uma imagem que me dá esperança em um mundo melhor, me dá esperança em entender que a Marielle continua em algum lugar”.


Em 2019, três assessoras diretas da Marielle – igualmente negras e oriundas de favelas – assumiram mandatos como deputadas estaduais. Renata Souza, Dani Monteiro e Mônica Francisco fizeram parte da bancada do PSOL na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Na eleição seguinte, em 2022, as duas primeiras tiveram um aumento expressivo de votos e conquistaram um segundo mandato. Renata Souza, saiu de 63.937 para 174.132 votos; Dani Monteiro, de 27.982 para 50.140 votos.


“Marielle era grande demais para que uma só pessoa representasse toda a sua luta. A grandeza da Marielle representa a luta por uma nova sociedade. E o principal recado deixado por ela é que a humanidade não se desumanize. Marielle é presente em todas as lutas contra as desigualdades sociais, em especial contra as desigualdades de gênero, raça e classe”, afirma Renata Souza. “Que a gente sinta afeto pelo outro, para garantir que a vida seja plena para qualquer pessoa, seja ela mulher, negra, pobre, indígena, quilombola, caiçara, seja a população LGBTQIA+. Que a gente possa ter esse nível de humanidade que a Marielle tanto nos ensinou”.


Renata Souza e Dani Monteiro estão entre as 44 pessoas eleitas em 2022, no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas do país, que adotaram as diretrizes da Agenda Marielle Franco. O projeto, criado em 2020, reúne um conjunto de compromissos políticos inspirados no legado da vereadora, como antirracismo, feminismo, direitos LGBTQIA+, saúde e educação pública, justiça ambiental e climática, além de demandas de moradores de favelas e periferias.


Instituto Marielle Franco


A diretora do instituto Marielle, Lígia Batista, (de amarelo), recebe pai, filha e mãe da vereadora - Arquivo pessoal
A diretora do instituto Marielle, Lígia Batista, (de amarelo), recebe pai, filha e mãe da vereadora - Arquivo pessoal

Quem coordena a Agenda é o Instituto Marielle Franco, criado pela família da vereadora em 2018. O propósito inicial era defender a memória da parlamentar e pressionar as autoridades que investigavam o assassinato. Mas o Instituto ampliou o alcance e passou a focar também na promoção de mudanças sociais.


Na página oficial, consta que uma das missões é “potencializar e dar apoio às mulheres, pessoas negras e faveladas que querem ocupar a política, para que os espaços de tomada de decisão tenham mais a cara do povo”. A direção ficou com Anielle Franco, irmã da vereadora, desde a criação até o início desse ano, quando ela assumiu o cargo de ministra da Igualdade Racial.


Anielle coordenou uma série de projetos no Instituto Marielle Franco. Entre eles, o lançamento da Plataforma Antirracista (Pane) em 2020, para apoiar candidaturas negras nas eleições municipais, e o projeto Escola Marielles em 2021, para formar politicamente mulheres de grupos minoritários.


“Eu precisava tomar conta da minha família, tomar conta desse legado, tomar conta dessa memória. E não digo ‘tomar conta’ como uma pessoa que vai pegar, ter como posse, mas para legitimar a luta que é de uma família preta, que sempre lutou para ter tudo que tinha. E três coisas me motivaram a seguir: cuidar dessa memória, cuidar da minha mãe e da minha sobrinha”, afirma a ministra.


O Instituto Marielle Franco hoje está sob nova direção: Lígia Batista, de 29 anos. Ela é formada em direito e mestranda em Políticas Públicas e Direitos Humanos. Antes, trabalhou na Anistia Internacional Brasil e na Open Society Foundations. A diretora enfatiza que defender o legado de Marielle é inspirar mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas a ocupar espaços de poder e tomada de decisão.


“Que o medo não seja um impeditivo para que elas estejam ali. Ao mesmo tempo que a gente quer ver cada vez mais mulheres negras eleitas, também queremos que elas se sustentem no poder. Então, a gente entende o lugar do debate sobre violência política como muito central para esse trabalho. Até porque o Instituto surge a partir de um feminicídio político. A nossa intenção é mobilizar através desse trabalho com a memória. Que as pessoas não esqueçam da história da Marielle, não esqueçam desse legado político deixado para o Brasil”, diz.


Fonte/Foto: Agência Brasil

Em entrevista ao BdF, ex-ministro defendeu a participação social para que o povo seja "sujeito e não objeto da política"

Em um restaurante no Mercado Municipal de Porto Alegre, Olívio Dutra está em uma mesa com mais três pessoas. Logo, é abordado por um casal pedindo a famosa selfie com o celular. A cena se repete nos próximos minutos com outros pedidos, sempre bem recebidos pelo ex-governador do Rio Grande do Sul. Um deles chama mais a atenção: um homem pede a foto exibindo, em seu braço direito, o rosto de Olívio tatuado.


A situação ilustra um pouco da história do também ex-prefeito de Porto Alegre, ex-ministro das Cidades, ex-presidente nacional do PT e um dos militantes históricos da esquerda brasileira. Receptivo, não é incomum ser encontrado em espaços públicos e mesmo no transporte coletivo da cidade. No final de janeiro, participou de uma das mesas do Fórum Social Mundial (FSM) de 2023, evento que já foi um dos mais importantes encontros internacionais de movimentos de todo o mundo, e que teve em Porto Alegre, em 2001, sua primeira casa.


"Havia um clima, um ambiente de participação, de cobrança do poder público e de um entusiasmo de fazer ainda mais do que estava se podendo fazer", relembra Olívio, ao comentar a escolha da capital gaúcha para sediar o FSM, época na qual o PT e partidos aliados do campo da esquerda governavam Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul. Muitas das iniciativas empreendidas pelo poder público local ganharam destaque, sendo a principal o Orçamento Participativo, história que ele resgata na entrevista abaixo.


Olívio descreve as dificuldades de implantação da proposta em Porto Alegre e também de trazer a ideia para outros âmbitos, como o governo gaúcho e o Ministério das Cidades no primeiro governo Lula. "O Orçamento Participativo é uma proposta muito importante, mas nós mesmos, nós, digo a esquerda, o meu partido, o Partido dos Trabalhadores, não espraiamos nem enraizamos bem essa proposta", aponta, dizendo que a experiência pode ser importante não só em termos de aprofundamento da participação social, mas também desempenhando um papel pedagógico para que as pessoas compreendam melhor o funcionamento do poder público.


"A capilaridade da proposta do Orçamento Participativo e da discussão das propostas de orçamento local, estadual, nacional é muito importante e contribui para o exercício democrático. Para instigar as pessoas a serem protagonistas, pensarem o Estado como uma coisa que não é propriedade do governante, da sua família, de seus partidários e de seus financiadores de campanha."


Na conversa, o ex-governador fala também sobre o cenário político brasileiro e a necessidade de mobilização. "O Lula tem muita autoridade pessoal, representação pessoal e conhecimento, e isso é um valor inestimável. Se não fosse ele o nosso candidato, não tínhamos ganho essa eleição, que já foi apertada. Mas é preciso ter o povo mobilizado, pressionando de baixo pra cima, porque vai sofrer muita pressão de cima pra baixo."


Brasil de Fato - Queria que você falasse a respeito desse processo do Fórum Social Mundial, que surge em 2001, com um contexto muito bom para as esquerdas aqui no Rio Grande do Sul. O PT tinha o governo do estado e também a prefeitura de Porto Alegre. Como foi o processo de trazer o Fórum Social Mundial e o que ele significou ali?

Olívio Dutra - Nós tínhamos já dez anos de uma experiência de governo do campo democrático popular, da esquerda [a primeira administração municipal do PT se inicia em 1989, com o próprio Olívio Dutra como prefeito]. O PT, o PC do B, o Partidão (PCB) e também o PSB. E tu sabe que também tinha uma ponta do PSDB?


Não era o PSDB de hoje...


Não, eram os primeiros passos do PSDB, que tinha lá em São Paulo o Mario Covas, que foi, inclusive um parceiro bom na Constituinte. E aqui tinha um pessoal, um campo bem definido do PMDB, do próprio PSB, um deles era o José Paulo Bisol [vice na chapa presidencial de Lula em 1989]. Nós governamos como uma frente do campo democrático, popular, de esquerda, encabeçada, claro, pelo PT. E foram dez anos de uma experiência de visão da política com um envolvimento consciente da cidadania, instigando as pessoas para serem sujeitos do processo de mudança da administração pública, de informação maior sobre o funcionamento da máquina pública, o que é o Estado, a sociedade, partido, governo. Nós militávamos no movimento social, comunitário, sindical, no meu caso e de tantos outros, e quando chegamos no governo, já na prefeitura, em 1988, tínhamos participado da Constituinte, e grandes questões tinham sido debatidas com a população. Dez anos depois mantivemos a prefeitura com esse campo e depois conquistamos pelo voto o governo do estado.


Então havia um clima, um ambiente de participação, de cobrança do poder público e de um entusiasmo de fazer ainda mais do que estava se podendo fazer. Nós, no movimento sindical, reivindicávamos muito depois de apanhar bastante da repressão da ditadura e não ter nenhuma autoridade querendo conversar conosco, mas a ditadura foi se esboroando no final da década de 80. Na Constituinte, já tínhamos discutido o papel do município, o orçamento público, e no movimento social e sindical aqui, tínhamos concluído que o orçamento não podia ser uma coisa assim, que nós saibamos só depois que ele está pronto. Nós defendíamos isso no movimento social, e agora a gente estava no governo e se abria a possibilidade de isso acontecer.


Tem uma historinha que o pessoal acha que foi invenção minha, mas na verdade não é. Na década de 70 chegou, quando não éramos espezinhados pela repressão, um momento em que uma autoridade nos recebeu na prefeitura e tinha reivindicação em relação ao transporte coletivo, não só preço, mas ônibus, horários, e estrutura, além de postos de saúde, escolas, até mesmo as praças, tudo isso estava descuidado. E numa dessas reuniões, as reivindicações foram colocadas e a autoridade disse "as reivindicações de vocês são justas mas o cobertor é curto, puxa a cabeça e destapa os pés, e vice-versa...".


E uma companheira, que era uma trabalhadora da indústria de vestuário, estava nessa reunião e nós sindicalistas — tudo bem machista — e quando ela levantou a mão para dizer uma coisa sobre essa frase da autoridade nós ficamos: "bah, mas nas nossas reuniões ela fala pouco...". E aí ela colocou uma questão muito interessante, disse: "O senhor sabe que eu trabalho numa fábrica de cobertor — e deu o endereço da fábrica, ali na Voluntários — e esse cobertor que o senhor fala nunca chegou para nós. Nós vemos a largura, o comprimento, a espessura, o material a ser usado. Se talvez esse cobertor de que o senhor fala tivesse chegado para nós, a coisa seria diferente". E aí a autoridade ficou numa saia justa, porque aquilo foi uma boa colocação.


Depois veio essa situação de sermos eleitos e o movimento social já tinha esses pontos para discutir. Foi se criando todo esse espaço e eu já estava no governo do estado com a mesma composição de forças político-partidárias e Raul [Pont] continuava na prefeitura. Os companheiros de São Paulo, Oded Grajew, Chico [Whitaker] e outros, estavam lidando com uma visão de como articular para que isso não se prendesse apenas aos episódios eleitorais.


Surgiu a ideia [do Fórum Social Mundial], houve um encontro com o pessoal do Le Monde e de outros movimentos na Europa, a gente acompanhava pelo governo do Estado. E se decidiu realizar aqui porque tinha um ambiente que vinha de longe, se criava um caldo de cultura em que havia na rua, nas comunidades, nos movimentos sociais, uma pressão legítima, uma esperança de que pudéssemos desencadear um processo, destrinchar melhor o funcionamento da máquina pública e, particularmente, a questão do orçamento. Como é, o que faz, de onde vem o dinheiro, para onde vai, quem paga imposto, quem não paga, quem deixa de pagar, quem tem privilégio. Mas, infelizmente, a questão da estrutura tributária não foi a principal na nossa experiência do Orçamento Participativo, embora tivéssemos momentos em que isso tenha acontecido, quando discutimos a atualização da planta de valores da cidade para definir um IPTU mais justo.


Quer dizer, o Orçamento Participativo tinha essa virtude de trazer as pessoas para a discussão de onde o dinheiro ia ser alocado, o que se fazer com o dinheiro, mas não chegou justamente nessa questão da tributação, que é sobre quem deveria ser tributado e de que forma?

Exatamente. Não chegamos a discutir essa questão chave, estruturante do orçamento. O orçamento tem duas pernas, receita e despesa, e pela realidade vivida pelas comunidades na cidade de Porto Alegre, a demanda era sempre por serviços que não existiam e que, se existiam, precisavam ser qualificados. A mobilidade urbana, o saneamento, as escolas, as praças, questões da vida, do cotidiano das pessoas, estavam degradadas, não havia de parte dos governos interesse em garantir que as pessoas tivessem uma vida mais digna, aprazível e usufruíssem a cidade.


Por isso, as reuniões do Orçamento Participativo foram pequenininhas no início, depois foram se estendendo e se espraiando pela cidade, desde a periferia, pelos bairros, pelo centro, até mesmo no interior, porque nós temos 15 mil hectares de área rural com cultura de economia familiar, onde se planta pêssego, uva, ameixa, e foi se espraiando essa ideia, criando pequenos núcleos. E aí nasce essa ideia e demos o nome de Orçamento Participativo. Vamos discutir os recursos, o que deve ou não ser prioridade. Não é o prefeito ou o governo, claro que tem que saber primeiro o que recebeu do governo anterior, o primeiro ano é a execução do orçamento recebido. Mas nós, com a ideia do Orçamento Participativo, já tínhamos no primeiro ano que preparar as reuniões junto com a população para propormos um orçamento, diferente não só na forma, mas também no conteúdo.


Reunião do Orçamento Participativo de Porto Alegre, em 1992 / Arquivo PT

Não foi fácil, porque o grau de organização e os costumes da população eram muito ligados à velha política dos caciques locais. Pegavam uma lista e iam de casa em casa pegar assinatura da pessoa para uma obra X, que é o mesmo interesse do cacique, do vereador, e também o interesse da população, mas a população seguia sem discutir. Tinham poucas associações de moradores, e as discussões começaram a estimular as pessoas a manter a organização comunitária, não era só chamar para pegar assinatura porque havia interesse político ou eleitoreiro de alguém. Nós não tínhamos maioria na Câmara de Vereadores tanto como na Assembleia estadual, nunca tivemos maioria, mas fomos pacientemente, persistentemente, tecendo a rede e ela foi brotando.


Começou no segundo ano do nosso governo com reuniões municipais. No governo estadual a coisa foi mais complicada, são 475 municípios, a maioria esmagadora é governada pelos partidos que compunham na Assembleia a oposição ao governo. Mas eles têm realidades que têm que ser tratadas na relação institucional, republicana, no pacto federativo, e nós sempre nos dispusemos a conversar com todos, mas nós queremos discutir também com todos o orçamento público. Nós não íamos dizer para o prefeito "olha, faça o Orçamento Participativo" aí, o movimento social que se encarregasse de exercer essa pressão de baixo para cima.


Então nós começamos no estado, e isso já tinha dez anos da experiência do orçamento municipal. Inclusive, quando assumimos o governo, o presidente da Assembleia, que foi eleito também para aquela legislatura, eu como governador fui lá assistir a posse do novo presidente. Fiquei uma hora e meia sentado, porque ali quem fala é o Legislativo, e o Executivo está lá por deferência, respeito às instituições. Aí fiquei por uma hora e meia ouvindo um discurso do então presidente da Assembleia, que foi presidente do Grêmio [Paulo Odone Ribeiro], e era contra o Orçamento Participativo, mas com um juridiquês contra a ideia, que tinha dez anos de experiência reconhecida na capital, e ele não queria que acontecesse a nível estadual porque seria um desrespeito ao Poder Legislativo, o Executivo e esses partidos querendo reduzir o papel do legislador, que é o autêntico representante das câmaras na Assembleia... Mas o orçamento é uma iniciativa do Executivo, que faz a proposta, e [a ideia era] fazer a proposta já com a participação da cidadania, abrir espaços para o governante não ficar falando sozinho, ou o vereador... Abre-se o espaço para quem não tem voz ou não tinha tido até então. Claro que o Poder Executivo não podia chegar e dizer "eu vim aqui ouvir de vocês o que eu tenho que fazer". Não. Nós viemos aqui colocar a realidade do orçamento e como funciona. Essa questão séria, que não é propriedade do governante, nem do poder econômico ou das pessoas mais influentes. Isso é de todos nós. Então nós, a população aqui, independentemente se votou em nós ou não, temos que influir na construção dessa proposta.


Era essa nossa conversa inicial. O pessoal da área técnica, econômica, fazendária, que tinha também essa visão, e queríamos incluir o funcionalismo público nesse processo, que fez um bom trabalho. Chegávamos nas reuniões e dizíamos para não ficar falando tanto tempo, nos disciplinar para trazer elementos esclarecedores e não para defender que o que está assim é bom, mas para dizer que o que está assim pode ficar melhor, pode ter outra lógica. E obras e serviços, tudo isso precisa ser feito em toda a cidade, mas algumas regiões têm mais necessidade do que outras, e temos que fazer, não segundo a pressão de um grupo econômico que quer ter uma relação do governo e realizar uma obra definida pelo seu interesse e não pela necessidade da população. Queremos discutir essa ideia de quem define a prioridade: é o governante e o grupo econômico, as pessoas mais influentes? Não, tem que ser a cidadania mobilizada, reunida, discutindo e depois também acompanhando.


Mas não é a reunião do Orçamento Participativo que transforma a proposta do governo em lei. Quem transforma a proposta do Executivo é o Poder Legislativo. A gente transmitia isso para as pessoas. Uma vez terminado o prazo do Executivo para apresentar o texto para o Legislativo, a cidadania tem que orientar sua pressão com mais ênfase sobre o Legislativo, a Câmara, para consolidar a proposta que sai com essa discussão, havida, fecundada pela participação da população, que levantou seus interesses. E aí tinha que fazer muita coisa, né? Porque uma obra aqui precisa de investimento às vezes acolá, colocar água potável numa vila que passa por morros, desce vales, tem que ver a produção da água potável. Tem que ter investimento não só lá na ponta, como quando nós recebemos cano enterrado lá na Vila X, mas nunca tinha água na torneira das pessoas e, quando tinha, se cortava rápido. Por quê? Porque não tinha aumentado a capacidade de produção da água potável, não tinham feito a canalização adequada. As casas de bomba que chegam num ponto do morro têm que empurrar aquela água lá em cima. Essas discussões foram feitas, não tem uma obra que pode se isolar de outras coisas que podem e devem acontecer nas relações da cidade. Foi devagar, mas foi.


Você fala dessa dificuldade, principalmente, que existe de transpor essa experiência do Orçamento Participativo de um município como Porto Alegre para o governo do estado e foi também ministro das Cidades no primeiro governo Lula. O presidente falou, inclusive recentemente, que ia sair o orçamento secreto para entrar o Orçamento Participativo. Naquela época, da primeira gestão, houve uma discussão a respeito de transpor de alguma forma essa experiência para o governo federal, uma tentativa de implementação de algo parecido?

Na verdade, fui convocado pelo Lula para ser o ministro do recém-criado Ministério das Cidades muito pela experiência nossa vivida aqui, tanto a nível municipal e estadual, em torno do Orçamento Participativo. Mas essa questão nunca foi discutida no governo. No primeiro mandato do Lula, não fiquei o tempo inteiro, fiquei três anos e pouco, e não houve nenhuma discussão que fizesse o orçamento ser um compromisso do governo e não de um ministério.


Mas houve sim, de parte do governo e particularmente do Lula, a ideia de fazer assembleias, eleger conselhos, e nós tratamos de eleger os Conselhos da Cidade nos municípios, nos estados e até mesmo nas regiões. E o Conselho Nacional das Cidades. Fizemos mais de 3.700, de 5.000 e tantos municípios do país, assembleias, umas com maior participação, outras com menor participação, para eleger os seus conselhos municipais e essa ideia da proposta orçamentária, de antes de ir para o Legislativo, se discutir com a população por iniciativa do governo, mas não para o governo ser a voz predominante, e sim tendo a capacidade de expor e de ouvir e de readequar as propostas.


A nível nacional não se assumiu e agora é bem provável e é muito bom que o Lula já tenha dito, que tenha essa questão, até por conta do orçamento das emendas parlamentares, secretas, bilhões que são usados para manipulação do eleitoralismo e até pela corrupção disfarçada. É evidente que o momento está aí dizendo que não se pode continuar com o orçamento sendo uma obra técnico-burocrática, de uma relação binária entre o Executivo e o Legislativo. Ficou na Constituição uma coisa genérica, mas está lá: o orçamento público deve passar por uma discussão de proposta pelas comunidades para ir para o Legislativo, que tem autonomia, sem dúvida.


Nós conseguimos fazer aqui no município uma discussão do IPTU sobre uma reforma tributária, "Não pode ser assim. Quem tem menos está pagando mais, quem tem mais paga menos impostos proporcionalmente..." E os municípios fazem parte do pacto federativo, os impostos são arrecadados no município, mandados para a União, demora para voltar a parte dele. E nós não sabemos, o povo, nem a administração... E a gente dizia que reforma tributária não é só lá em cima, de cima para baixo. O município também é um ente federado, tem a sua autonomia e suas receitas próprias, e a principal é o IPTU.


Quando fui para o Ministério das Cidades, nós chegávamos em municípios em que o pessoal estava esperando o retorno do Fundo de Participação dos Municípios, que estava atrasado. Nós chegamos e no terceiro mês o governo Lula colocou em dia o retorno dos municípios do Fundo de Participação, mas grande parte dos municípios não cobrava IPTU. E quem ganhava com isso? O setor imobiliário, os investidores, se instalavam sem pagar nada. E os recursos do município que poderiam fazer tanta coisa, inclusive infraestrutura de estradas... A gente no Ministério das Cidades encarou essa questão. Mas no tempo em que fui ministro das Cidades não tinha orçamento, conseguimos fazer milhares de cisternas nas regiões de seca permanente no Nordeste, principalmente, inclusive com a participação do setor privado. Por incrível que pareça, no Nordeste, a Febraban encarou a construção de centenas de cisternas.

Fizemos as plenárias municipais e até regionais, estaduais e a plenária nacional, que foram elegendo suas coordenações e estas depois elegendo a coordenação do Conselho Nacional das Cidades. Uma ampla assembleia de conselheiros, de representantes dos conselhos dos municípios, que discutiram essas coisas e pudemos repetir isso por dois, três anos. Foi se criando essa ideia da participação.


Mas depois o ministério virou um distribuidor de verbas das emendas, que naquele tempo não eram secretas. E cada deputado chegava "tem um dinheirinho, será que o ministério não pode fazer uma obra..." E quem é que discute a prioridade? Como é que é a região? Como pode ser trabalhado uma relação de programas intermunicipais que relacione municípios com transporte... Transporte coletivo numa região metropolitana é algo que tem que ser interligado, um transporte coletivo de qualidade e, se possível, gratuito ou com subsídio, tem que ser discutido num conjunto e não com um deputado, um vereador aqui e ali. E aí o ministério se esgotou, se esvaziou. Tomara que se retome agora. Não vai ser fácil, com as maiorias que se compuseram nessa última eleição, inclusive nos campos de vereadores, assembleias, e a maioria que eles compuseram no Congresso.


Agora, o Lula tem muita autoridade pessoal, representação pessoal e conhecimento, e isso é um valor inestimável. Se não fosse ele o nosso candidato, não tínhamos ganho essa eleição, que já foi apertada. Mas é preciso ter o povo mobilizado, pressionando de baixo pra cima, porque vai sofrer muita pressão de cima pra baixo. E a capilaridade da proposta do Orçamento Participativo e da discussão das propostas de orçamento local, estadual, nacional é muito importante e contribui para o exercício democrático. Para instigar as pessoas a serem protagonistas, pensarem o Estado como uma coisa que não é propriedade do governante, da sua família, de seus partidários e de seus financiadores de campanha. E isso é a visão democrática, republicana, que a direita, os poderosos não querem nem saber que o povo conheça bem e se assuma como sujeito e deixe de ser mero objeto da política deles.

Então ministro das Cidades, em 2004, Olívio Dutra discursa sobre o Fórum de Autoridades locais pela inclusão social, no Fórum Urbano Mundial / Antonio Milena/ABr

O Orçamento Participativo é uma proposta muito importante, mas nós mesmos, nós, digo a esquerda, o meu partido, o Partido dos Trabalhadores, não espraiamos nem enraizamos bem essa proposta. Embora tenha havido muitas experiências e iniciativas, de pequenas e médias prefeituras, e também de cidades grandes, a Luiza Erundina, por exemplo, em São Paulo, fez um esforço enorme para ter o Orçamento Participativo.


Vou te contar uma história, vai fazer uns dois anos fui convidado para ir em Portugal, em uma cidade perto de Lisboa porque lá o prefeito estava desenvolvendo a ideia e convidou pessoas de todo mundo. E tinha duas pessoas lá de Nova York. Fiquei interessadíssimo de Nova York ter essa possibilidade e me disseram que lá já tinha. Eram dois vereadores das periferias da cidade, e para eles havia Orçamento Participativo porque, com a verba do gabinete deles, iam em suas bases e discutiam juntos um percentual desta verba sobre melhoria da praça, dos parques esportivos, até mesmo da saúde da escola ali na região deles. Não era decisão do governo, do Executivo, é uma iniciativa que... bom, segundo eles, baseada na experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre, mas está longe de ser [Orçamento Participativo].


Aqui também, muitas cidades chegaram pra mim dizendo "governador, aqui nós já temos Orçamento Participativo". Eles chamavam um companheiro que é presidente da associação de muitos anos e outras lideranças que a gente nem conhecia, e tratavam de uma quantia que, segundo eles, tinha sobrado do orçamento, e aquelas pessoas queriam destinar melhor a aplicação daquela verba para a região. Que bom, mas isso não é Orçamento Participativo. Cadê a participação das pessoas, para se reunir, para discutir, para ouvir, para propor, para cobrar, para acompanhar?


Aqui tinha até um livrinho que, no final do processo, trazia o que havia sido decidido nas assembleias em obras e qualificação de serviços. E muito disso a gente não pôde fazer no tempo dado pelas condições adversas de pressão de toda ordem e aí precisava rediscutir porque tinha que estar no outro orçamento um benefício em um bairro inteiro, por exemplo, de qualificar o leito da rua para passar o ônibus. O empresário do ônibus dizia que a passagem tinha que aumentar porque o desgaste do ônibus é grande... E nem sempre se faz isso em tempo curto, porque às vezes as empresas disputam entre elas uma licitação e até você decidir tudo tem que ser discutido por comunidade. E não é para justificar, é para dizer às pessoas que essa lógica não é a lógica que deve funcionar para um poder público, que tem de cuidar das pessoas, tratar de um desenvolvimento parelho, justo e viável. É para dizer às pessoas que essas coisas acontecem, mas não se pode naturalizar. No Orçamento Participativo, nós temos que discutir isso não para nos conformar, mas para procurar transformar.


O presidente Lula tem falado dessa preocupação em relação à participação e no Fórum Social Mundial também vimos várias falas, inclusive de autoridades, falando sobre o restabelecimento, por exemplo, do mecanismo dos conselhos. Mas quando vemos, por exemplo, os conselhos que foram desmontados já no governo Temer e também no governo Bolsonaro, eles eram e são importantes, mas, ao mesmo tempo, o desmonte foi relativamente fácil, houve uma reação muito pequena, basicamente dos atores que estavam envolvidos e daqueles que estavam mais próximos. Como fazemos para consolidar mecanismos de participação e fazer com que a população se reconheça mais neles, passando a participar efetivamente?

Acho que essa ação de desmonte desses conselhos formais foi feita exatamente porque, mesmo naquela formalidade, um conselho já é uma instância que pressiona o governo. Antes que esse conselho deixasse de ter esse cinturão de formalidade e de agrupamento de um interesse de poucos, antes que uma maioria assumisse verdadeiramente os conselhos, o governo Bolsonaro tratou de desconstituir, desqualificar, desprezar, ignorar e até mesmo eliminar, se possível, os conselhos em todas as áreas.


É evidente que a reação da base e da sociedade foi mínima, quase nenhuma, porque eram muitos conselhos em que a coordenação, a direção, a presidência deles eram de pessoas ligadas a esta ou aquela pessoa influente e o povo era objeto da política, e não o sujeito dela. Não tenho uma fórmula para dizer que deve ser feito assim, assado. Nós mesmos não conseguimos fazer nos dois mandatos do Lula, no de Dilma, em nosso mandato mesmo, nas prefeituras dos municípios, ter conselhos mais consistentes, não só consultivos, mas também deliberativos e com, digamos, renovação das lideranças nas suas direções. Não podemos ficar nos gabando que fizemos isso da melhor forma. Nos esforçamos, sem dúvida alguma, e surgiram muitas novas lideranças, as mais antigas também se qualificaram, todo mundo ficou vendo que é preciso aprender mais, ouvir mais, ter maior compromisso com a construção coletiva da política.

Não tenho solução, como "olha, os conselhos não podem ser só consultivos, mas deliberativos, tem que ser assim", porque tudo depende realmente de instigação do exercício da cidadania. E isso é um trabalho paciencioso, deve ser permanente, não tem prazo entre uma eleição e outra. E tem que acontecer. E tem no meio, muitas coisas que se interpõem, as próprias eleições mesmo. Como dizia Guimarães Rosa, o importante não é o local a que você vai chegar, o importante é como que que tu faz a travessia. Porque tem vento, tem calmaria, tem tempestade, tem pedra no caminho. E como é que faz? Esse é um aprendizado que todos temos que estar dispostos a fazer, mas não para se justificar e não apostar na mudança, no protagonismo das pessoas.


Fico muito preocupado porque tem companheiros que acham que é chegar nas pessoas e dizer "você tem que fazer isso, é assim que tem que ser", como se a gente soubesse tudo e eles não soubessem nada. Aquilo que o Paulo Freire dizia que às vezes encaramos a pessoa como um copo vazio e nós vamos lá colocar o conteúdo. Isso é uma visão que não tem nada a ver com a visão do mundo que nós queremos que seja construído, solidário, coletivo, com sentimento pelas pessoas. E cada pessoa é um universo, não é uma coisa criacionista, que tem o criador que molda lá. Tem toda uma ação evolutiva, evolução, transformação, isso é um processo. Nem o governo pode ser prisioneiro disso e nem pode estar achando que é ele que tem que ter uns fiozinhos na mão para orientar os conselhos autônomos, os movimentos sociais. Ele tem que estar aberto à pressão legítima, estimulando a participação e afirmando com a sua prática que a democracia é o nosso objetivo permanente. Não é uma tática eventual. E a democracia não é uma receita pronta e acabada. Ela tem que estar permanentemente sendo qualificada, e não de cima para baixo. É, como a gente diz, colocar um tição no outro, para a chama ser retomada, e também ter muita gente assoprando a cinza que vai se formando e a chama ser permanente.


Nesse aspecto, talvez a extrema direita aqui no Brasil tenha conseguido trabalhar com a mobilização, e vimos nestes últimos anos ser um tipo de ação que não se limitava só ao período eleitoral, algo alimentado o tempo todo e que tem continuidade. Este segmento conseguiu fazer esse estado de mobilização permanente na prática?

Não acho uma coisa nova isso da direita. Nós temos na sociedade brasileira introjetada, particularmente na classe dominante, seus representantes, seus profissionais, uma visão muito estreita do funcionamento do Estado. Desde o Brasil Colônia, dois reinados, passando pela República, o Estado, pela classe dominante brasileira, foi uma espécie de cidadela dos seus interesses. É um pensamento de direito conservador, não raro também apoiando os regimes autoritários, fascistas e nazistas que foram surgindo na Europa e que estão lá ainda. Teve aqui no Brasil a expressão do fascismo, do nazismo, espalhada pelo país inteiro, não só nas colônias dos imigrantes e descendentes de imigrantes.


O que fez essa nova direita retomar isso e trazer à tona o lodo da História que estava no fundo do leito dos rios da democracia. E nós, no nosso governo, estávamos entusiasmados e de repente, por estarmos desapercebidos disso e não estarmos cuidando de elementos trazidos da direita e da centro-direita, às vezes para dentro do nosso próprio governo, chega uma hora que o que estava lá embaixo, assoreando as águas democráticas, veio à tona. E é isso que está aí.


Não é uma novidade, é um traço da cultura da classe dominante que estava submerso por um tempo em que houve um pensamento democrático, governos mais de centro-esquerda, mais populares, e meio que se esconderam e ficaram submersos, mas nunca deixaram de atuar e nunca deixaram de influir. Nunca deixaram de se inter-relacionar entre si a nível nacional e internacional. Veio à tona uma coisa que já vinha de muito tempo, um traço da cultura da classe dominante brasileira.


Por quê? Porque na nossa democracia nunca, realmente, o povo se assumiu como sujeito mesmo da transformação, sempre tinha uma composição, um "deixa pra lá, vamos ajeitar aqui e tal"... E nós vivemos de golpes. Até a Independência aconteceu porque um rei estava aqui e o outro rei estava lá em Portugal, os dois se desentenderam, as classes dominantes lá e cá ajeitaram e o povo ficou assistindo. Evidentemente aquela situação da família real vir para cá, Napoleão estava chegando lá e trouxe muita coisa pro Rio, para o país, mas é uma elite de poucos, não alterou a correlação de forças e a posição da classe de baixo. 350 anos de escravatura, e isso defendido pelas igrejas e defendido pelas elites, defendido até pelas universidades por um tempo, não deixou lastro? Claro que tem um lastro conservador e de direita na cultura da classe dominante brasileira.



Fizeram essa loucura, perderam terreno, mas eles têm milhares de pessoas se nucleando pelo país inteiro. De novo, é aquela eterna vigilância que pode garantir a democracia. Mas a democracia não é uma obra pronta, acabada, numa situação em que 1% da população tem 70% da riqueza total do país, uma concentração de renda das maiores do mundo. Tem gente que esbanja, que investe em outros países e paraísos daqui e dali, e vive à tripa forra, um dinheiro que é imposto não pago ou com percentuais inferiores à sua enorme capacidade contributiva, e fortunas que foram feitas ainda lá no tempo da escravatura, transferidas por herança para esses grupos que também não pagam impostos sobre as heranças e os patrimônios.


O que está acontecendo não é que a inteligência deles fez algo que nós não fizemos. Nós erramos e muito também, podíamos ter trabalhado essa dimensão cultural, política, de, digamos, de conscientização. Não que tenha que ter um grupo conscientizador e o outro para ser conscientizado, mas como trabalhar com políticas públicas que as pessoas depois não têm aquilo como conquista da sua mobilização. Nós fizemos coisas muito importantes, sem dúvida alguma, mas como fizemos é uma discussão. Poderíamos ter feito de forma melhor, mais instigante e mais provocativa, o exercício da cidadania, essas coisas têm que ser trabalhadas permanentemente e não professoralmente. Mas é fundamental que a cultura brasileira, diversificada e rica como ela é, seja respeitada e estimulada e daí surgem mais formas de a gente desdobrar didática e pedagogicamente uma política de conscientização para que cada cidadão e cidadã brasileira se assuma como sujeito e não objeto da política. Para a política ser a construção do bem comum com protagonismo.


Debate ocorreu durante a 13ª Bienal da UNE

A disputa política que visa barrar a extrema-direita no país passa pela comunicação e as redes sociais. Essa foi a conclusão de especialistas, durante a 13ª Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), neste sábado (4), no Rio de Janeiro. O encontro foi realizado no prédio da Fundição Progresso, nos Arcos da Lapa.


“A disputa que está em curso é a de narrativas. Infelizmente, a nossa democracia corre riscos, sim. E a gente precisa, para enfrentar esse debate, entender isso", argumentou o deputado federal André Janones (Avante-MG).

O deputado acrescentou que "nada é mais essencial do que a comunicação, que é um tema transversal, que trabalha e toca nas emoções das pessoas". "Os nossos estudantes estão antenados para isso. É a juventude, também através das redes sociais, que vai fortalecer a comunicação para a gente vencer essa batalha”, acrescentou o deputado.


Visão semelhante tem a jornalista e pesquisadora em comunicação Renata Mielli, ex-coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Para ela, a derrota do bolsonarismo nas urnas não significa o fim do extremismo político.


“No dia 30 de outubro, a gente derrotou o Bolsonaro, mas nós não derrotamos a extrema-direita no Brasil. E qualquer discussão que a gente tenha que fazer hoje sobre comunicação, economia ou infraestrutura, tem que partir desta realidade. É neste conceito que a gente tem que entender o debate da comunicação hoje. Porque nós não derrotamos uma extrema-direita que tomou conta dos corações e mentes de uma grande parcela da população do nosso país”, advertiu Renata.


Segundo Renata Mielli, é necessário investimento no sistema público de comunicação: “Garantir a complementariedade do sistema público, privado e estatal, previsto na Constituição. Fortalecer a Empresa Brasil de Comunicação. Precisamos fortalecer a comunicação pública em nosso país. Fortalecer as rádios comunitárias, a mídia alternativa. A comunicação é um direito”.


Infraestrutura Historiador e youtuber Jones Manoel - Tomaz Silva/Agência Brasil

Para o historiador e youtuber Jones Manoel, que também participou do debate, é preciso pensar e investir em um sistema de informática e comunicação nacional, que torne o país independente dos grandes conglomerados digitais estrangeiros, que atualmente decidem e modulam, por algoritmos próprios, o discurso nas redes.


“Um programa de comunicação em que a infraestrutura técnica, o processamento e a posse dos dados fiquem no Brasil, a partir de um controle democrático com protagonismo de empresas públicas", defendeu.

Ele acrescentou que o acesso à internet gera informações que são processadas por empresas estrangeiras. "Toda vez que a gente acessa a internet, está produzindo bilhões de dados, sobre gostos, tendências comerciais e políticas. Isso não pode ser processado por empresas estrangeiras, à serviço de outros governos”, disse Jones.



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